sábado, 5 de fevereiro de 2011

Entrevista com Marcos Bagno

Autor discute o certo e o errado da língua falada

Jornal do Commercio,       
Recife, 29 de outubro de 1998.   

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Marcos Bagno, mineiro de Cataguases, que já morou no Recife e atualmente está radicado em São Paulo, lança hoje, às 9h30, no auditório do Centro de Artes e Comunicação da UFPE, o livro A Língua de Eulália, uma novela sociolinguística publicada pela Editora Contexto.Nessa entrevista, Marcos Bagno fala seu novo trabalho, um livro que vem provocando boas discussões sobre o que é “falar certo e falar errado”.

Que tipo de livro é A Língua de Eulália?
Bagno – É um livro sobre alguns problemas de ensino da língua portuguesa, e principalmente um livro sobre o preconceito lingüístico que impera na nossa sociedade contra as pessoas que falam uma língua diferente da ensinada nas escolas. Para tornar a leitura mais agradável e fácil para não-especialistas, decidi abordar esses temas na forma de uma narrativa romanceada, com peripécias de enredo e personagens dinâmicos, que falam muito o tempo todo.

Daí o subtítulo novela sociolingüística?
Bagno - Exatamente. Novela porque conta uma história, e sociolingüística porque trata de questões que têm a ver com a relação entre a língua que a gente fala e a organização da sociedade em que a gente vive.

Em que consiste o preconceito lingüístico que você citou há pouco?
Bagno - O preconceito lingüístico é um conjunto de idéias distorcidas que se baseia no mito de que só existe uma única língua portuguesa digna deste nome e que seria a língua ensinada nas escolas, prescrita nas gramáticas e compendiada nos dicionários. Qualquer manifestação lingüística que escape desse domínio escolar-normativo é considerada, pelo preconceito lingüístico, errada, feia, estropiada, rudimentar, deficiente, e não é raro a gente ouvir que “isso não é português”.

O livro fala o tempo todo em “português padrão” e “português não-padrão”. Como você explica estes conceitos?
Bagno - O português padrão é a língua falada pelas pessoas que detêm o poder político e econômico e estão nas classes sociais mais privilegiadas, que nós sabemos que são uma pequena minoria na população do Brasil, país que detém o triste recorde mundial de pior distribuição da riqueza nacional entre as camadas sociais.

E quem fala o português não-padrão?
Bagno - O português não-padrão é a língua da grande maioria pobre e dos analfabetos do nosso povo. É também, conseqüentemente, a língua das crianças pobres e carentes que freqüentam as escolas públicas. Por ser utilizado por pessoas de classes sociais desprestigiadas, marginalizadas e oprimidas pela terrível injustiça social que impera no Brasil, o português não-padrão é vítima dos mesmos preconceitos que pesam sobre essas pessoas. Ele é considerado “feio”, “deficiente”, “errado”, “rude”, “tosco”, “estropiado”, idéias que resultam da simples ignorância dos mecanismos que governam a língua não-padrão.

E isso é grave para a educação?
Bagno - Gravíssimo. Esses preconceitos fazem com que a criança que chega à escola falando o português não-padrão seja considerada uma “deficiente” lingüística, quando na verdade ela simplesmente fala uma língua diferente daquela que é ensinada na escola.

Isso explicaria por que tantas crianças pobres acabam abandonando a escola?
Bagno - Em parte, sim, junto com os fatores econômicos que as obrigam a trabalhar muito cedo para ganhar a vida, impedindo-as de continuar na escola por serem desprezadas, por não terem seus direitos lingüísticos reconhecidos como tais, por serem obrigadas a assimilar conceitos veiculados numa variedade de português que é estranha para elas, essas crianças não encontram nenhum estímulo para prosseguir seus estudos.

Tudo por causa do mito da língua única?
Bagno - Sim. Não escola não reconhece a existência de uma multiplicidade de variedades de português e tenta importar a variedade padrão sem procurar saber em que medida ela é, na prática, uma “língua estrangeira” para muitos alunos. Imagine que você não sabe nadar e matricula-se num curso de natação. Na primeira aula, você e todos os outros alunos são jogados, sem bóia, no lado fundo da piscina. Aqueles que já souberem nadar conseguirão se salvar e prosseguirão no curso. Os que não souberem, terão que se debater até chegar à beira da piscina e serão mandados embora. Outros, quem sabe, até morrerão afogados. É um método de ensino completamente absurdo! Mas é assim que acontece na escola. Nosso sistema educacional valoriza aquelas crianças que já chegam à escola trazendo na sua bagagem lingüística o português padrão, e expulsa as que não o trazem. Isso é uma grande injustiça, porque é exatamente esse português padrão que deveria ser ensinado na escola, porque ele dá acesso aos mecanismos de ascensão social. A escola cobra na entrada o que ela mesma deveria dar na saída.

Quer dizer que as pessoas não escolarizadas falam um português “diferente” e não um português “errado”?
Bagno - Exato. Com base no conhecimento das diferenças que existem entre as duas variedades de português talvez pudéssemos perceber melhor as dificuldades que surgem para o aluno que tem de aprender a variedade padrão. Poderíamos também, quem sabe, traçar novas estratégias de ensino, fugir da tradicional, que é autoritária e intolerante para com o que é diferente. Se todos compreendessem que o português não-padrão é uma língua como qualquer outra, com regras coerentes com uma lógica lingüística perfeitamente demonstrável, talvez fosse possível abandonar os preconceitos que vigoram hoje em dia no nosso ensino de língua materna.

Então é possível escrever uma “gramática do português não-padrão”, do mesmo modo como existem as gramáticas do português padrão?
Bagno - É perfeitamente possível.

O seu livro é essa gramática?
Bagno - Não, nem de longe. Uma gramática do português não-padrão é um trabalho para muitos e muitos anos, e para toda uma equipe de cientistas da linguagem. Minha intenção com A Língua de Eulália é mais modesta. Quero apenas contribuir para que o português não-padrão deixe de ser visto como uma língua “errada” falada por pessoas intelectualmente “inferiores” e passe a ser encarado como aquilo que ele realmente é: uma língua bem organizada, coerente e funcional.

Você quer que a escola pare de ensinar o português padrão?
Bagno - De modo nenhum! Em hipótese alguma eu reivindicaria a substituição da norma padrão pela norma não-padrão como objeto de ensino. A existência de uma variedade padrão é desejável e necessária para que exista um meio de expressão comum a todas as pessoas cultas de um país. O que eu reivindico, isso sim, é que ela não seja ensinada como a única variedade existente, mas como outra variedade, mais uma que a pessoa poderá usar, enriquecendo assim sua bagagem lingüística.

Que tipo de diferenças entre o português padrão e o não-padrão você aborda no livro?
Bagno - Por exemplo, eu explico que a transformação de L em R nos encontros consonantais – como em Cráudia, chicrete, grobo, pranta – não é um “defeito de fala” nem tampouco um traço de “atraso mental” dos falantes do português não-padrão, mas simplesmente um fenômeno fonético que contribuiu para a formação da própria língua portuguesa padrão. As pessoas que dizem Cráudia, grobo, chicrete, pranta estão apenas dando livre curso à mesma tendência fonética que fez, por exemplo, com que o latim fluxu desse em português frouxo, com um R bem nítido, que plaga desse praga, que sclavudesse escravo, que blandu desse brando, que flaccu desse fraco, que gluten desse grude, que o germânico blank desse em português branco, que o provençal plata desse em português prata, entre tantos outros exemplo. Se fôssemos pensar que as pessoas que dizem Cráudia, chicrete e pranta têm algum “defeito de fala”, seríamos forçados a admitir que toda a população da província romana da Lusitânia também tinha esse mesmo defeito na época em que a língua portuguesa estava se formando com base no latim vulgar. E que Camões também sofria desse mesmo mal, já que ele escreveu ingrês, pubricar, pranta, frauta, frecha na obra que é considerada o maior monumento do português literário clássico, o poema Os Lusíadas. E isso, é “craro”, seria no mínimo absurdo. No entanto, eu vi, apavorado, um programa de televisão chamado “Nossa Língua Portuguesa” classifcar esse fenômeno de “defeito de fala”, sugerindo até uma “terapia fonoaudiológica” para “consertá-lo”!
 Disponível em http://marcosbagno.com.br/site/?page_id=200, com alteração

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